Janny Medina é professora do curso de Direito da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília
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Há 26 anos, em 19 de fevereiro de 1998, era promulgada a Lei nº 9.610, a Lei de Direitos Autorais (LDA), marco regulatório que até hoje orienta a proteção de obras intelectuais no Brasil. Chegando a outro aniversário da legislação brasileira, é inevitável refletir sobre como a inteligência artificial (IA), enquanto tecnologia disruptiva, tensiona os princípios básicos da legislação autoral: autoria, originalidade, materialidade, suporte da obra, entre outros. A propriedade intelectual clássica e tradicional está em crise?
A LDA, elaborada em um contexto pré-digital, não previa a complexidade trazida pelas tecnologias emergentes. Apenas os autores, como escritores, pintores, músicos etc., eram considerados criadores de obras intelectuais, nos modelos da Convenção de Berna de 1886, primeiro instrumento internacional que aborda o assunto e ainda vigente.
Porém, o progresso tecnológico e especificamente a IA, é capaz de gerar textos, imagens, músicas e até softwares de forma autônoma, colocando assim em xeque noções centrais da lei, como a figura do "autor humano".
No Brasil, a legislação exige que a obra seja fruto de uma "criação do espírito", atribuída a uma pessoa física. Mas quem é o autor quando um algoritmo produz uma música baseada em milhões de dados? A falta de clareza gera insegurança jurídica para artistas, empresas e desenvolvedores é real. Embora exista um entendimento na doutrina nacional que as obras criadas por IA não ganham proteção no âmbito da legislação vigente, esse cenário deve mudar com o posicionamento da tecnologia na vida cotidiana.
Outro ponto crítico é o uso de obras protegidas para treinar modelos de IA. Sistemas como os large language models (LLMs) consomem vastos volumes de dados, muitas vezes sem consentimento dos titulares de direitos. Embora a LDA permita o uso de obras para fins de estudo ou crítica (limitações e exceções), o treinamento de IA não se enquadra claramente nessas hipóteses. Empresas argumentam que se trata de "mineração de dados", enquanto autores defendem que é violação de direitos morais e patrimoniais.
A falta de regulamentação específica deixa o Brasil em desvantagem frente a países que já discutem diretrizes para IA e direitos autorais. A União Europeia, por exemplo, incluiu no AI Act obrigações de transparência sobre conteúdos gerados por IA e o uso de dados protegidos. No Brasil, projetos como o PL 21/2020, que propõe a Lei Geral de IA, ainda não abordam profundamente a questão autoral, focando em ética e responsabilidade civil.
Iniciativas isoladas tentam preencher essa lacuna. O Projeto de Lei 2.338/2023, em tramitação no Congresso, propõe a criação de um marco legal para obras geradas por IA, sugerindo que sejam de domínio público ou atribuídas a quem operou o sistema.
Entidades como o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) defendem a necessidade de remuneração justa aos autores cujas obras alimentam bancos de dados de IA.
O debate também envolve a economia criativa. De um lado, startups brasileiras de IA pressionam por flexibilidade para inovar; de outro, artistas temem desvalorização de seu trabalho. Em 2023, o caso de uma plataforma que usou livros de autores nacionais para treinar algoritmos sem autorização reacendeu a discussão sobre a necessidade de licenciamento e compensação.