Aqueles que leem meus textos sabem que, invariavelmente, sou obrigado a criticar algumas decisões judiciais, em especial dos Tribunais Superiores. Semana passada aconteceu de novo.
Em decisão liminar, relacionada a um caso do estado de Santa Catarina, um dos ministros do STJ suspendeu a ordem de prisão preventiva decretada contra um homem acusado de ter consigo, para fins de tráfico ilícito, cerca de 15 pedras de crack. Embora o indivíduo já tenha antecedentes criminais e a polícia afirme que ele se encontrava em local onde o tráfico de entorpecentes é comum, o magistrado considerou que as circunstâncias do caso não evidenciam indícios razoáveis de traficância, faltando para o ministro, portanto, um dos pressupostos para a prisão preventiva.
De acordo com o processo, ao perceber a aproximação da polícia, o réu tentou se livrar das drogas (jogando-as para dentro de uma residência), mas é certo que as pedras foram na sequência localizadas e devidamente apreendidas. Ao ser detido em flagrante delito, o sujeito ainda tinha consigo cerca de R$ 239,00 (duzentos e trinta e nove reais) em seu bolso.
No decreto de prisão preventiva, o juiz de primeira instância, por óbvio, apontou o risco de reiteração delitiva, não só pelo fato do increpado já ter sido condenado outras duas vezes (por tráfico e por porte ilegal de arma de fogo de uso restrito), mas também por ser um velho conhecido da polícia por condutas desse tipo.
No entanto, ao examinar o pedido de habeas corpus, o ministro relator considerou irrelevante e insuficiente tudo isso, invocando em favor do demandado os velhos mantras da presunção de não culpabilidade e do Estado Democrático de Direito, os quais quase sempre só enxergam o ponto de vista do criminoso, mas nunca o das vítimas. Só não sei, então, que raios de democracia é essa!
Já com relação à quantidade de drogas, o ministro mencionou uma pesquisa de 2014, na qual os usuários de crack declararam consumir cerca de 13 (treze) pedras da substância em um dia normal de uso. Portanto, segundo o relator, a quantidade apreendida no caso sob análise não indicaria, por si só, a traficância, até porque o indivíduo não foi visto entregando ou vendendo a droga, podendo ser apenas um usuário que foi até ali para comprá-la. Sei, sei... Mas e o dinheiro trocado apreendido e as condenações anteriores, inclusive pela mesma atividade criminosa? Será que não contam? Acho que não, né?
Para finalizar, tem-se que o magistrado ainda salientou que o fato de a polícia apontar o cidadão como "velho conhecido" na prática do comércio maldito não constitui fundamento jurídico idôneo para a prisão preventiva, não sendo atribuição dos agentes da lei etiquetar quem é perigoso ou rotular sujeitos como desviantes. Sinceramente, fiquei confuso com essa afirmação. Quer dizer que relatos testemunhais não são mais provas? Revogaram essa parte do Código de Processo Penal? Toda a comunidade local relatar para a polícia que o cidadão é traficante e os policiais reportarem isso no processo não vale? Eles próprios saberem que o indivíduo é traficante, até porque já foi preso e condenado outras vezes por isso, também é irrelevante? Bem, se num país onde a vida do policial já não vale nada mesmo (haja vista o que fizeram recentemente com o Cabo Cardoso, no Rio de Janeiro), não chega a ser surpreendente que suas palavras sejam solenemente ignoradas. O que vale mesmo é a negativa do bandido, né? Verdade.
Com todo o respeito àqueles que pensam em sentido contrário, tenho que decisões como essa revelam aquilo que meu colega de Ministério Público Cristiano Mourão (MPRS) já comentou em outra oportunidade. Vivemos em tempos onde muitos tribunais estão a construir uma jurisprudência ingênua e extremamente perigosa. Como dito por ele, não há mais que se falar em jurisprudência, mas sim em “juris(IM)prudência”, tamanha a falta de zelo em se proteger a sociedade ordeira e trabalhadora, em especial nesses casos envolvendo entorpecentes e a saúde pública como um todo.
Há quem diga que a guerra contra as drogas não funcionou, devendo ser revista a necessidade da prisão para crimes desta estirpe. No entanto, ouso dizer que nunca houve no Brasil um efetivo combate contra esses tais delitos. Basta se fazer uma análise da legislação e dos benefícios processuais relacionados ao tema nas últimas três décadas para se perceber que jamais combatemos efetivamente essa questão. Aquilo que no início era crime mediano virou de menor potencial ofensivo (art. 16 da Lei 6.368/76); aquilo que sempre foi crime passou a não ser mais punido com pena de prisão (art. 28 da Lei 11.343/06); e aquilo que sempre foi crime hediondo passou a não ser todas as vezes, sendo cabível liberdade provisória, regime aberto e prestação de serviços à comunidade (art. 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/06). Se a pessoa detida for mulher, em especial gestante ou com filhos, aí é que temos mais benefícios ainda (prisão domiciliar, progressão em 1/8, etc.). Se for menor então, melhor eu nem comentar.
Como se sustentar, assim, que a guerra contra as drogas nunca funcionou? Nunca funcionou porque nunca existiu! Entretanto, ainda que assim não fosse, não é sendo leniente com uma determinada conduta que iremos extirpá-la do seio social. Se a tal guerra contra as drogas não funcionou, então a guerra contra os homicídios, os roubos e os estupros também não rendeu muitos frutos. Afinal de contas, nunca diminuíram a contento. Mas será que alguém seria louco de, diante desta constatação, sugerir a despenalização e a descriminalização também desses delitos? Era só o que faltava! Se com o Direito Penal está ruim, imaginem se ficarmos também sem ele.
Ser condescendente com as drogas e com o tráfico não nos levará a lugar algum. Legalizar a coisa muito menos! Consoante já dito pelo estudioso Bene Barbosa, “quem pensa assim erra por desconhecer a alma criminosa. Os traficantes quase nunca são apenas traficantes. Se o tráfico fosse regulamentado pelo Estado, nenhum deles correria para os órgãos responsáveis para legalizar sua boca de fumo, mas simplesmente migrariam para outros tipos de crime. O criminoso, via de regra, migra, adapta-se, mas não abandona sua escolha criminal sem um forte choque de valores”. Particularmente, concordo integralmente com o autor e, mais do que isso, afirmo que nunca ouvi falar em um só criminoso que tenha deixado de delinquir porque aquele nicho de mercado ficou em baixa. A verdade é que o enfrentamento ao crime deve ocorrer, ou então repetiremos os mesmos erros da decisão acima apontada e de tantas outras que analiso em minha mais recente obra (Se eu cair, vai ser atirando!, Ed. Lumen Juris).
E é exatamente por isso que não vejo razões para se comemorar a data mencionada no título deste artigo (08/12). Que dia da justiça é esse onde fatos como os aqui abordados são rotineiros e cotidianos? Que dia da justiça é esse onde cerca de 40.000 (quarenta mil) presos são soltos por conta do coronavírus (dentre eles Mizael Bispo e Geddel Vieira Lima)? Que dia da justiça é esse onde a saída temporária de presos no final do ano é aumentada e não diminuída? Que dia da justiça é esse onde André do Rap é solto e desaparece? Que dia da justiça é esse onde policiais não podem fazer operações rotineiras nos morros do Rio de Janeiro? Que dia da justiça é esse onde a guerra assimétrica do tráfico de drogas não pode ser combatida com o uso de helicópteros? Que dia da justiça é esse onde algumas pessoas da classe falante chegam a dizer em um programa de rádio que os assaltantes de Criciúma respeitam o povo e possuem uma lógica por trás de seus atos? E, por último, que dia da justiça é esse onde quase a metade do mais alto tribunal do país consegue dizer que aquilo que está escrito na Constituição Federal na verdade não está?
Ao menos para mim, justiça é algo totalmente diferente disso tudo! Consoante já dizia Theodore Roosevelt, “A justiça não consiste em ser neutro entre o certo e o errado, mas sim descobrir o que é certo e sustentá-lo. Custe o que custar e onde quer que ele se encontre!”
Pois é isso que eu e tantos outros tentamos fazer aqui embaixo nas trincheiras da vida. Pena que o mesmo não ocorra em todos os lugares de nosso amado Brasil.
Rodrigo Merli Antunes
Promotor de Justiça em São Paulo e pós-graduado em Direito
Membro do MP Pró-Sociedade