São tantos os episódios diários e surpreendentes que ocorrem no Brasil, que nem mesmo conseguimos acompanhar com atenção tudo aquilo que acontece em nossa volta. Dias atrás, ao menos um dos julgamentos do STF passou praticamente despercebido.
Veja só.
Tempos atrás, no estado do Paraná, um policial militar lotado na Coordenadoria Estadual de Defesa Civil, durante seu horário de expediente, deixou no Protocolo Geral da sede do Governo Estadual uma caixa para remessa pelo serviço de envio de correspondências da administração pública. Os servidores públicos responsáveis pela triagem, desconfiados do peso e do conteúdo da embalagem, abriram o pacote e constataram a existência de 36 frascos com líquido transparente. Após perícia, ficou constatado que os frascos continham ácido gama-hidroxibutírico e cetamina, substâncias entorpecentes sujeitas a controle especial.
Pois bem, o juízo do Conselho Permanente da Justiça Militar da Comarca de Curitiba condenou o policial a três anos de reclusão, em regime inicial aberto, substituídos por penas restritivas de direitos, em virtude da prática do delito previsto no artigo 290, parágrafo 1º, inciso II (tráfico de drogas cometido por militar em serviço), do Código Penal Militar. A defesa, no entanto, sustentou desde o início a ilicitude de tal prova, em razão da inviolabilidade constitucional da correspondência. Na sentença, o juízo originário concluiu pela impossibilidade de o sigilo de correspondência legitimar práticas ilegais e destacou não estar em jogo a proteção da intimidade, pois não houve violação de comunicação escrita ou de conteúdo que veiculasse manifestação de pensamento. Assentou que a caixa, por qualificar-se como encomenda, não estaria inserida na inviolabilidade prevista na Constituição Federal de 1988 (artigo 5º, inciso XII).
Em grau de recurso, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJ-PR) também considerou a prova lícita e negou provimento à apelação interposta pela defesa. No entanto, no recurso extraordinário interposto ao STF, os defensores reiteraram a tese de inviolabilidade da correspondência, apontando ofensa ao artigo 5º, incisos XII e LVI, da Carta Magna, e pediram a absolvição do policial.
No último dia 17/08, por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que, sem autorização judicial ou fora das hipóteses legais, é ilícita a prova obtida mediante abertura de carta, telegrama, pacote ou meio análogo. Em outras palavras, o militar que estava em atividade pública, em horário de serviço, e que se valeu do Protocolo Geral de um órgão público para traficar, acabou sendo absolvido.
Como dito, a maior parte dos julgadores seguiu o voto divergente de um dos ministros, para quem a abertura da correspondência não observou as cautelas legais. Segundo o tal magistrado, o atual regulamento dos Correios (Lei 6.538/1978) prevê que não constitui violação de sigilo da correspondência postal a abertura de carta, entre outras hipóteses, que apresente indícios de conter substância proibida, mas prevê que a abertura seja feita obrigatoriamente na presença do remetente ou do destinatário, o que não ocorreu no caso.
Em outras palavras, os traficantes teriam que estar ali juntinhos observando a abertura dos pacotes.
Além disso, o ministro condutor do voto vencedor ressaltou que, após a Constituição Federal de 1988, o sigilo de correspondência deve também ser lido à luz dos direitos previstos nos tratados de direitos humanos e, consequentemente, da interpretação dada a eles pelos órgãos internacionais de aplicação. Ele citou que o Pacto de São José da Costa Rica prevê que “ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação” e que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos estabelece garantia idêntica.
Trocando em miúdos, atrapalhar o tráfico de um agente público é desumano, arbitrário e abusivo, sendo a descoberta do entorpecente um ato ofensivo à honra do traficante, o qual só estava remetendo um pacotinho ingênuo para outra pessoa.
Para finalizar, sustentou o julgador que eventual restrição à inviolabilidade das correspondências tem que atender a um fim legítimo e necessário dentro de uma sociedade democrática. Noutras palavras, “exige-se que a restrição obedeça a um rígido teste de proporcionalidade”.
Ora bolas, se evitar o tráfico não é um fim legítimo dentro de uma sociedade que busca o bem de seu povo, então o que será que isso significa? Ademais, se a saúde pública não é proporcionalmente mais importante do que o sigilo da correspondência de um criminoso, que senso de proporções é esse que está a tomar conta da cúpula de nossa Justiça?
Com a devida vênia, achei curiosa por demais esta nova decisão, até porque o próprio STF já decidiu, por inúmeras vezes, que a abertura de correspondências suspeitas nos presídios do país, por exemplo, não ofende qualquer direito ou garantia individual. Como sabido, nenhuma prerrogativa é ilimitada ou absoluta, e muito menos quando ela é utilizada para a prática de atos ilícitos.
E isso sem contar que é também tranquilo o entendimento de que no exercício de uma atividade pública a regra é a observância do princípio da publicidade, não podendo um militar em serviço se valer do Protocolo Geral de um órgão administrativo para praticar ilícitos e, depois, invocar em seu benefício o sigilo individual da encomenda.
Definitivamente, o trato com as drogas em nosso país vai de mal a pior. Penas cada vez mais leves, benefícios cada vez maiores, operações policiais suspensas e, frise-se, sem qualquer helicóptero. Afinal de contas, a guerra assimétrica imposta pelo tráfico não pode ser vencida de modo algum, não é mesmo?
Triste nação a nossa onde alguns órgãos de cúpula parecem dar proteção às atividades dos traficantes, transformando o Brasil em um verdadeiro narcoestado. Digo isso porque, a bem da verdade, parece que a maioria do Supremo está a ditar a receita para os traficantes em geral: Despachem a droga pelo Correio. Caso sejam descobertos, não há com o que se preocupar, pois a prova será considerada ilícita.
E é exatamente por isso que, nesse final, faço minhas as palavras de Simão Bacamarte, conhecido personagem de Machado de Assis no conto O Alienista: “A loucura, objeto de meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão. Entretanto, começo a suspeitar que seja um continente”
Bem-vindo ao hospício, caro leitor!
Rodrigo Merli Antunes
Promotor de Justiça em São Paulo e pós-graduado em Direito
Membro do MP Pró-Sociedade