Recentemente, duas grandes revistas científicas retiraram de seus bancos de dados dois artigos sobre o novo coronavírus. A Organização Mundial da Saúde (OMS) cancelou e reiniciou um ensaio clínico sobre o uso da hidroxicloroquina no tratamento da doença. Em seguida, afirmou que a possibilidade de transmissão seria rara em pacientes assintomáticos, mas logo negou a declaração.
Frequentemente, anunciam-se curas para a COVID-19 baseadas em poucos casos mal ou sequer documentados. Aparentemente, o vírus também afeta as ciências da saúde, as reputações de revistas conceituadas, a política e as instituições responsáveis pela preservação do bem estar da população.
Tudo isso é compreensível, dada a gravidade do contexto. Mas a pesquisa clínica requer competência, isenção e imparcialidade. A medicina baseada em evidências demanda o uso da razão para prevenir que interesses e emoções atrapalhem o livre pensar científico.
Há mais de 30 anos, buscamos aprimorar a pesquisa, o ensino e a aplicação da Medicina Baseada em Evidências no Brasil e ao redor do mundo. As exigências de comprovações científicas por profissionais da imprensa brasileira durante a pandemia têm sido notáveis, provando que esse trabalho continuado vale a pena. Nestas horas de desespero, os charlatões e as fake news tiveram vidas curtas.
Infelizmente, a experiência dos médicos em Wuhan com a COVID-19, por motivos compreensíveis, não pôde ser devidamente acompanhada de metodologias de pesquisas clínicas. Tendo em vista o impacto causado em apenas seis meses, os dados são, em sua maioria, retrospectivos. Um bom ensaio clínico, porém, requer vários anos de trabalho intenso e dedicado.
Ao surgir uma nova doença é preciso descobrir vários fatores. Para isso, a metodologia da epidemiologia clínica é fundamental.
Os estudos retrospectivos têm a vantagem de permitir a análise de vários fatores de risco de uma só vez, além de serem de rápida execução. Por outro lado, dependem da memória dos pacientes e não são úteis para avaliar tratamentos e testes diagnósticos. Nestes casos, estudos prospectivos fornecem dados muito mais confiáveis, apesar de serem mais demorados.
Levantadas hipóteses retrospectivamente, pode-se aprimorar o conhecimento com estudos prospectivos. Na ausência de um grupo controle adequado, mascaramento do pesquisador e dos pacientes, randomização, um bom protocolo de estudo e de condução de estudo, dados inúteis acabam por apoiar opiniões espúrias daqueles que ignoram métodos adequados de obtenção de evidências ou que estão interessados em se promoverem financeiramente.
O ensaio clínico que estudou o uso da Dexametasona oral ou endovenosa em pacientes internados com oxigenação não invasiva ou ventilação mecânica é a primeira evidência de um tratamento medicamentoso de fato benéfico para o tratamento de pacientes com COVID-19 dada a qualidade do projeto e o tamanho amostral adequado.
Embora a Medicina Baseada em Evidências tenha feito muito até aqui, ainda falta bastante. A pandemia tem ajudado na conscientização social do papel de cientistas preparados, essenciais para o enfrentamento da guerra contra esse perigosíssimo inimigo invisível. Mas uma guerra como essa, da qual depende a vida de milhões de pessoas, definitivamente não é para qualquer profissional da saúde.
* Por Dr. Álvaro Atallah é PHD em Medicina Baseada em Evidências e diretor do Centro Cochrane Brasil. A Cochrane reúne as melhores fontes de evidências científicas em saúde. A unidade brasileira funciona na UNIFESP desde 1996 e sua biblioteca tem acesso gratuito no Brasil desde 2001.