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O Carnaval de São Paulo realizou a apuração da Liga Independente das Escolas de Samba, coroando a Mocidade Alegre como grande campeã. Porém, a polêmica ficou por conta do desfile da escola de samba VAI-VAI, que escolheu o enredo “Capítulo 4, Versículo 3 - Da Rua e do Povo, o Hip-Hop: Um Manifesto Paulistano” (composição de Danni Almeida, Vagner Almeida e outros).
O “Capítulo 4, Versículo 3”[4] refere-se à Canção de Racionais MC's de 1997. Ao ser avaliada por aqueles que entendem de samba e Carnaval, a VAI-VAI acabou em 8º lugar. Sem polêmicas, pois com base na avaliação dos jurados, seu desfile foi medíocre (se não concorda, procure o significado da palavra no dicionário).
A grande polêmica do desfile da VAI-VAI foi a ala “Sobrevivendo no Inferno”, em referência a um álbum dos Racionais MC’s, a qual representa a tropa de choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) como “demônios”, além de enaltecer os bandidos, com as chaves das cadeias penduradas no cinto da fantasia.
Nossa Lei Maior assegura que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;”, mas até que ponto a liberdade de expressão pode ir? Por pura provocação “substitua CHOQUE por STF” e pense no que poderia acontecer.
Voltando à ampla liberdade de expressão artística carnavalesca, lembramos alguns casos emblemáticos: em 1989 com a escola de samba Beija-Flor; em 2000 com a escola de samba Unidos da Tijuca; em 2004 com a escola de samba Grande Rio; em 2005, novamente com a escola de samba Beija-Flor; em 2008 com a escola de samba Viradouro; em 2019, um caso emblemático em São Paulo (todos os anteriores ocorreram no Rio de Janeiro) com a escola de samba Gaviões da Fiel. Todos, com acionamento da justiça ou pressão da Igreja Católica, direta ou indiretamente. É provável que tenham outros casos, talvez mais emblemáticos, lembramos destes.
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O carnaval é isso, “pode tudo”, como diziam antigamente. Houve épocas em que a grande polêmica girava em torno de homens fantasiados de mulher, mais recentemente, a polêmica girava em torno das fantasias das mulheres. O tempo rege o ato, vivemos em outra história, com outra realidade. Dentro desta nova realidade, pode-se tudo? Quase tudo? Ou só não pode quando afrontar a igreja? Até onde vai a liberdade de expressão artística?
Seria de uma pretensão absurda querer responder a última questão em menos de centenas de páginas, entretanto, a Constituição Federal (CF), a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e outros atos normativos, inclusive internacionais, trazem um caminho mínimo a ser seguido.
O STF recentemente assim se pronunciou: “O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional. [...] [ADI 4.451, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 21-6-2018, P, DJE de 6-3-2019.]” (g.n.). Esta decisão seria aplicada, certamente, caso qualquer policial ingressasse com uma ação judicial contra a VAI-VAI, disso não há dúvidas.
A VAI-VAI quando pede “Preconceito nunca mais!” não teria praticado justamente tal comportamento em face de um órgão estatal, previsto na Lei Maior do País? Diriam os defensores da agremiação que a polícia realmente comete abusos. Mas, não é a generalização a base de todo preconceito? A própria VAI-VAI justificou que se baseou na obra do Racionais MC de 1997. Ok, mas assim mesmo não há preconceito?
Uma ala em que se “demoniza” os policiais da tropa de choque é, para dizer o mínimo, uma ofensa à família policial militar, aos familiares dos policiais, aos amigos dos policiais etc. Conseguem imaginar o caso concreto de uma criança perguntando ao seu pai que trabalha na tropa de choque se ele é um demônio?
Curiosamente uma investigação da Polícia Civil de São Paulo indica a VAI-VAI como um “reduto” do PCC por meio de um ex-diretor da escola de samba.[5] Delinquente não gosta de policial. Policial não gosta de quem afronta a lei. Equação perfeita, não é? Mas, não vamos levar para esse lado para não cairmos no mesmo erro que a VAI-VAI caiu: generalização e preconceito! Todos são inocentes até que se prove o contrário.
Para acirrar o debate, tivemos ainda a presença física, em um carro alegórico, de um ministro de Estado, no caso, curiosamente da pasta dos Direitos Humanos – Silvio Almeida, ministério que tem como uma das suas funções o “combate a todas as formas de violência, de preconceito, de discriminação e de intolerância”. Será que o ministro corrobora com a visão de que a “esquerda não gosta da polícia” ou foi uma simples e infeliz coincidência? Pela sua rede social, descobre-se que ele tinha ciência do conjunto da escola, pois, em seu perfil no X[6] afirmou que “Meu avô paterno - o “Lorito” - foi um dos fundadores da @VaiVaiOficial e um de seus primeiros diretores. É a Escola de Samba que faz parte da história da minha família e que é uma das mais vigorosas manifestações da cultura negra da cidade de São Paulo. Este ano Vai-Vai homenageou a cultura Hip Hop, cuja importância para a minha formação eu já mencionei outras vezes”. (g.n.)
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Desde sábado existe um clima de antagonismo entre a classe policial e a escola de samba VAI-VAI. Findada a apuração, o veredito foi dado por aqueles que entendem de Carnaval, e com isso fomos poupados de ter que assistir novamente esta escola com suas alegorias preconceituosas desfilando no próximo sábado. Sorte dos policiais que estarão realizando a segurança do público no Sambódromo.
Entendemos que a liberdade de expressão é algo vital, com extensão à classe artística, mas, embora o samba enredo historicamente tratado remeta ao ano de 1997, uma década com diversas ocorrências já apuradas, a falta de respeito da VAI-VAI coloca em xeque qualquer razoabilidade no tocante à liberdade de expressão, principalmente em uma festa em que a segurança é realizada, em sua maior parte, pela própria PMESP, para que tudo possa ocorrer bem.
Pior ainda quando essa afronta se dá num período conturbado para a segurança pública de São Paulo, no qual policiais estão sendo alvo de atentados, já havendo diversos mortos e feridos em serviço. Ao demonizar a polícia, a VAI-VAI atinge não aqueles policiais que eventualmente foram truculentos na década de 90, mas sim toda classe policial, desde aquele que está atuando para a segurança da população no Sambódromo, nos blocos, nas praias, estradas, ou seja, trabalhando para que o restante da sociedade possa se divertir no Carnaval, mas também aqueles que estão arriscando suas vidas atuando contra o crime organizado, quer seja na Baixada Santista, quer seja em qualquer outro lugar de São Paulo. Não há, portanto, o menor sentido na demonização realizada pela VAI-VAI.
Por fim, fica a dúvida: a quem acresce enaltecer os bandidos e enfraquecer a polícia? Pense e responda!
Por Ernesto Puglia
Frederico Afonso Izidor
Leia a nota da Vai-Vai na íntegra:
“Neste contexto, foram feitos, ao longo do desfile, uma série de recortes históricos, como a semana de arte de 1922 e o lançamento do álbum “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MCs, em 1997. “Sobrevivendo no Inferno” é o segundo álbum de estúdio do grupo, lançado pelo selo da gravadora Cosa Nostra em 20 de dezembro de 1997.
É considerado o álbum mais importante do rap brasileiro. Em 2007, figurou na 14ª posição da lista dos 100 melhores discos da música brasileira pela Rolling Stone Brasil. Em 2018, o álbum foi incluído pela Comvest (Comissão Permanente para os Vestibulares da Universidade Estadual de Campinas) na lista de obras de leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp a partir de 2020. Meses depois, a obra virou livro, publicado pela Companhia das Letras, tamanha sua relevância.
Segundo a Revista Rolling Stone Brasil, que ranqueou o álbum na 14ª posição da lista dos 100 melhores discos da música brasileira, “Sobrevivendo no Inferno colocou o rap no topo das paradas, vendendo mais de meio milhão de cópias. Racismo, miséria e desigualdade social — temas cutucados nos discos anteriores — são aqui expostos como uma grande ferida aberta, vide ‘Diário de um Detento’, inspirada na grande chacina do Carandiru”.
Ou seja, a ala retratada no desfile de sábado, da escola de samba Vai-Vai, à luz da liberdade e ludicidade que o carnaval permite, fez uma justa homenagem ao álbum e ao próprio Racionais Mcs, sem a intenção de promover qualquer tipo de ataque individualizado ou provocação, mas sim uma ala, como as outras 19 apresentadas pela escola, que homenageiam um movimento.
Vale ressaltar que, neste recorte histórico da década de 90, a segurança pública no estado de São Paulo era uma questão importante e latente, com índices altíssimos de mortalidade da população preta e periférica. Além disso, é de conhecimento público que os precursores do movimento hip hop no Brasil eram marginalizados e tratados como vagabundos, sofrendo repressão e, sendo presos, muitas vezes, apenas por dançarem e adotarem um estilo de vestimenta considerado inadequado pra época. O que a escola fez, na avenida, foi inserir o álbum e os acontecimentos históricos no contexto que eles ocorreram, no enredo do desfile.”