Foto: Divulgação |
No próximo domingo, a Argentina atravessará uma das disputas eleitorais mais acirradas de sua História, conforme as pesquisas das últimas semanas. Trata-se de um pleito com diversas cargas emocionais, pois é a primeira vez que Javier Milei, um candidato autodenominado libertário, enfrenta Sérgio Massa, um candidato do oficialismo peronista, ameaçando as bases de uma cultura política nacional, estabelecida no país há várias décadas.
De acordo com Nicolas Shumway, autor do livro A invenção da Argentina: história de uma ideia (Edusp), a Argentina é vista como um país fracassado, pois foi uma das poucas nações a sair de uma condição de Primeiro para a de Terceiro Mundo. Segundo o autor, existem várias explicações incompletas e contraditórias acerca deste tema, como a análise da sua histórica estrutura socioeconômica, os erros de suas elites, os golpes militares, o peronismo, a tradição autoritária, a ameaça comunista, até chegar à influência do imperialismo contra a nação. No entanto, para Shumay, uma das explicações mais significativas encontra-se na “peculiar mentalidade divisória criada por intelectuais argentinos no século XIX”.
Criou-se na história argentina uma “mitologia da exclusão”, quando ao invés das buscas por consensos, uma grande divisão foi alimentada no confronto intelectual argentino. De um lado, estaria a posição central e iluminada de Buenos Aires, que defendia seu poder como centro irradiador das ideias modernas, em detrimento de uma Argentina popular e mestiça do campo, que deveria ser submetida aos preceitos das ideias civilizatórias. Dentre os inúmeros exemplos dessa divisão, encontra-se a tentativa de excluir a presença dos negros em sua formação histórica, quando milhares deles foram enviados para a Guerra do Paraguai (1864-1870).
As marcas dessa grande divisão ainda ressoam na cultura política argentina, tendo em vista o mapa das intenções eleitorais dos últimos dias, quando vemos que Sérgio Massa possui uma importante vantagem na grande Buenos Aires, enquanto Javier Milei avançou em diversas regiões no interior do país. Diante de tamanha polarização, é compreensível que os argumentos em favor de um ou de outro estejam carregados de significados dramáticos, que ilustram a atual encruzilhada argentina.
Embora Massa represente o oficialismo peronista, ele é o candidato que mais se desassociou do kirchnerismo, desde a saída de Cristina Kirchner da Presidência. Trata-se de um político que, em caso de vitória, terá que lidar com uma agenda reformista necessária em um terreno avesso a tais medidas, sofrendo inclusive com possíveis atos de fogo amigo. Massa se colocou como o candidato da moderação em um país cujos índices de pobreza cresceram significativamente na última década.
Na linha opositora, Javier Milei busca liderar uma voz coletiva de rechaço contra um sistema que promove desigualdades históricas, através de um nacionalismo reconhecidamente excludente. Suas ideias mais exóticas não são tão levadas em consideração ao analisarmos que Milei representa uma alternativa dentro do sistema, como ocorreu com os exemplos de Trump (EUA), Bolsonaro (Brasil) e Meloni (Itália). Novamente encarado como uma ameaça da ultradireita por parte da opinião pública, Milei é mais um candidato que, em caso de vitória, terá que promover suas prometidas transformações a base de muita negociação política, pois o Congresso argentino continuará majoritariamente peronista.
Acima desse confronto com tons dramáticos está uma nação ainda dividida em seu frágil pacto federativo, que promove uma desigualdade não apenas socioeconômica, mas cultural e histórica. As assimetrias argentinas estão chegando a um ponto decisivo em sua trajetória enquanto nação com índices valorosos de desenvolvimento humano. Ademais, uma Argentina cada vez mais fragilizada significa uma perda da relevância regional do Mercosul no contexto global das relações internacionais.