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Na introdução de seu livro, dedicado às ideias republicanas que circularam nos tempos do Brasil Colônia, a historiadora Heloísa M. Starling resgata a trajetória do frei Vicente do Salvador, que foi um dos primeiros escritores a pensar a ideia da boa gestão coletiva ou pública. Desde o século XVII, a impressão de que o bem público e os interesses privados eram tratados de forma desigual no projeto colonial, proporcionava decisões em benefício de alguns em detrimento de um todo.
Ainda de acordo com Starling, ao final do século XVIII, a ideia de República já havia atingido a dimensão de valores compartilhados de forma pública, além de reforçar “os significados e possibilidades do ideal de liberdade”. As revoltas em Minas Gerais (1789), Rio de Janeiro (1794), Bahia (1798) e Pernambuco (1817) ilustraram a larga dimensão territorial desse imaginário nascente. Contudo, ao contrário de todos os países que decidiram por estabelecer diferentes tipos de república no continente americano, ao longo dos séculos XVIII e XIX, durante o processo de Independência do Brasil optou-se pelo regime monárquico.
O Brasil passaria a frequentar o clube dos países republicanos da América somente ao final do século XIX, quando suas relações com o continente africano, por conta do tráfico de escravos, e com o continente europeu, devido às intensas relações comerciais com a Inglaterra, tiveram um fim e perderam sua robustez, respectivamente. Essa passagem ocorreu, literalmente, da noite para o dia, quando Dom Pedro II foi avisado durante a madrugada acerca da quartelada do marechal Deodoro da Fonseca, que proclamaria uma República sem nenhuma participação popular. Os impactos desta ação tempestuosa permaneceriam vigentes durante muitos anos.
Logo após a Proclamação, os militares e, posteriormente, a elite cafeicultora, tiveram enormes dificuldades para consolidar o novo regime. Diversos foram os protestos e revoltas referentes ao desencanto com a república militar e aristocrática. Sua legitimação social viria com um novo golpe, em 1930, que distanciaria a dimensão republicana da defesa da democracia no Brasil, mesmo incluindo milhões de brasileiros e brasileiras no processo de formação de uma cidadania baseada em direitos sociais.
De Getúlio Vargas a João Figueiredo, com exceção dos anos 1946-1963, o Brasil alargou a distância entre republicanismo e democracia, enfraquecendo, ainda mais, a relação entre o cuidado com o bem público e a igualdade de direitos. Somente na Constituição de 1988 é que as ideias de república e democracia criaram um laço resistente em nosso país.
De lá pra cá, o Brasil presenciou transformações significativas em seu desenvolvimento cívico e social, criando um grande aparato público de saúde, universalizando o acesso à educação, incentivando o uso do transporte público nas grandes cidades, democratizando o acesso ao consumo, além de oportunizar a vitória de diferentes atores sociais para liderar a Presidência, elegendo um outsider neoliberal, um professor de sociologia, um metalúrgico, uma economista e um militar reformado.
Todavia, a cultura republicana ainda não se enraizou no país. Dos privilégios privados da recém-aprovada reforma tributária em detrimento do bem público ao ódio das condições de igualdade nas regras de trânsito, o cidadão brasileiro permanece querendo construir sua aristocracia individual, independentemente do estrato social em que vive. Até nas lutas sociais contemporâneas é possível visualizar que os movimentos verticalizam suas causas sem horizontalizar suas perspectivas, criando novas desuniões e novos privilégios.
Urge demandar da sociedade brasileira uma política de desenvolvimento e produtividade, que consiga criar uma cultura, um verdadeiro imaginário republicano, que faça com que os cidadãos sejam educados e formados a compreender que um simples banco de uma praça pública é fruto de um consenso civilizacional, construído a partir do esforço de milhões de trabalhadores. Se esse pequeno avanço ocorrer, quem sabe, poderemos começar a resolver as fraturas expostas da nossa trajetória republicana.
Dedico este texto a José Murilo de Carvalho, um dos principais historiadores da nossa história, que nos deixou um importante legado acercas das relações entre sociedade e república no Brasil.