Livro e podcast trazem narrativas de uma parteira, uma benzedeira, uma carimbozeira e duas pescadoras artesanais. Jornalista Erika Morhy mudou-se para Salinópolis (PA) para captar sons e registrar histórias pouco conhecidas da região do Salgado paraense
Saberes tradicionais de cinco mulheres da região de Salinópolis, município da costa Atlântica do Pará, são o eixo central das narrativas reunidas pela jornalista Erika Morhy, no projeto Mulheres do Mar - composto por um livro e uma temporada de cinco episódios em podcast.
No livro “Mulheres do mar: relatos biográficos de Salinas a Deir Ammar”, Erika revive parte da sua própria ancestralidade por meio da trajetória do avô paterno, Hassen Morhy (1904-1984) - que migrou da mediterrânea comunidade de libanesa de Deir Ammar para o Brasil e estabeleceu morada em Salinópolis no fim da vida. Na publicação, recheada das histórias dessas cinco guardiãs dos saberes tradicionais da região, as pitorescas fotografias se mesclam aos antigos retratos de família da autora.
O projeto é composto ainda por uma série áudio-documental de cinco episódios em podcast, onde é possível experienciar a cadência do sotaque da região, a peculiaridade dos termos e expressões locais. Há diversos outros sons que transportam o ouvinte direto para o universo daqueles mares.
“Nutro profundo afeto por esta cidade atlântica da Amazônia, que é mais conhecida por ser o maior reservatório de água doce do planeta. A experiência de passar tanto tempo na casa dos meus avós, desde a infância, e, com o falecimento deles, adotar esse lugar como morada mantém em mim um vínculo de muito encanto com esse universo, desde o bioma próprio até à população local, onde tenho amigos de infância. Eu precisava contar sobre esse ‘lado B’ da cidade, que cresce com o turismo balnear e tem sufocado boa parte da sua diversidade natural e humana”, justifica Erika.
O volume denso de fotografias, de gravações de entrevistas, de captação de sons ambiente e leituras de pesquisas científicas se construiu, principalmente, durante o inverno amazônico, no primeiro semestre de 2021. Resultou em um acervo de, pelo menos, 10 horas de entrevistas, fora os demais registros para compor a paisagem sonora. Com a chegada do verão, teve início a etapa de escrita do livro e roteirização dos episódios, seguida pela finalização da obra e do podcast.
Histórias em papel
O livro foi oferecido aos cuidados da editora paraense Edições ¼, no intuito de garantir, entre outras coisas, a força poética da artesania no processo de produção de cada um dos exemplares, com a elegância da capa dura, mimetizando a madeira de delicadas embarcações locais. Quem lê, encontra uma escrita híbrida, em primeira pessoa, transitando entre a precisão documental e a liberdade literária.
Na apresentação da obra, o educador e artista visual Alexandre Sequeira descreve que, ao ler “Mulheres do mar”, a pessoa é conduzida “na certeza de possibilidades gratificantes de infinitas interpretações da vida -- numa correspondência entre seu permanente fluir e a irremediável revisão das formas que a animam”.
O som das mulheres do mar
Cinco mulheres protagonizam capítulos particulares no relato sobre práticas tradicionais a que se dedicam, patrimônios imateriais da Amazônia, transmitidos de forma oral ao longo de inúmeras gerações. A primeira delas, Antônia Lúcia Celeiros de Melo, uma parteira com saberes finamente administrados por sua avó e por sua mãe, é responsável por um relato cheio de sonoplastia.
Já Edna Maria Alves Dias - neta criada como filha pelo Mestre Palinha, fundador do grupo de carimbó O Popular - dá continuidade à prática reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil desde 2014. Esta mulher, que nasceu no quarto da casa, onde era promovida uma roda de carimbó, mantém vivas também as tradições do Boi Divino, dos pássaros Tem-Tem e Andorinha, das folias de São Benedito e da ladainha aos mortos.
Por sua vez, Zélia Maria Saraiva é uma benzedeira que se define como filha da Encantaria e oferece seus serviços à comunidade com profundo respeito à intuição e crença divina, enquanto Maria do Socorro da Costa Rodrigues e Marina dos Santos Monteiro exercem a pesca artesanal com esmero para o sustento próprio e para o intenso turismo balnear de Salinas, nome pelo qual a cidade é mais conhecida.
Erika Morhy entrevistou e apresentou, em cinco episódios de cerca de 20 minutos cada, o podcast em formato narrativo “Mulheres do Mar”. É um áudio-documentário, recurso que facilita a acessibilidade para o público não alfabetizado - afinal, mais de 50% da população de Salinas vive abaixo da linha da pobreza. Mas a ideia do podcast narrativo, sobretudo, é fazer com que os ouvintes façam uma imersão na dinâmica oral das narradoras, nos sons ambientes captados durante a pesquisa na cidade e nas múltiplas melodias afins para provocar a imaginação de cada ouvinte. Entre eles, os sons de pássaros no Cemitério Nosso Senhor do Bonfim, onde está sepultado Mestre Palinha; sons do carimbó O Popular e da ladainha à São Raimundo Nonato; sons da rabeta que faz transporte entre a beira mar e a praia da Ponta do Espadarte; sons da água que corre livremente na Fonte do Caranã; sons dos gansos que Dona Marina vende; sons das ruas onde moram; sons das tradicionais árvores de oiti; e, claro, sons do mar. É justo por essa composição que o formato do podcast é conhecido como narrativo, porque privilegia histórias, cenários e emoções recheados de paisagens sonoras.
“Foi complexo administrar a execução de um trabalho denso de pesquisa e produção com a maternidade, o que exigiu de mim um deslocamento regular entre Salinas, onde passei a viver, e Ananindeua, onde mora minha filha com os avós. Ela não se adaptou a viver na cidade. Além dos cuidados e temores de um trabalho presencial em meio à pandemia, que exigia distanciamento e até isolamento social”, pondera Erika. Mas ela acrescenta que o resultado foi gratificante. “Uma das minhas preocupações era agradar as entrevistadas, pela generosidade com que abriram a porta de suas casas e de suas vidas pra mim, e pela vida tão dura que levam. O encontro coletivo no lançamento e as conversas individuais que seguem até os dias de hoje me dão a garantia de que alcancei esta expectativa. Por outro lado, minha intenção era fazer com que os dois produtos gerassem, especialmente por meio das escolas públicas, encantamento diante da beleza do ofício destas mulheres e valorização da diversidade de saberes. Algumas professoras já têm me dado retorno positivo quanto isso também. Tenho recebido retorno, inclusive de outras cidades e estados. Agora resta ao poder público investir em ações que acolham estas pessoas, gerem preservação da natureza e bem-estar a estas mulheres e tantas outras como elas, que estão em Salinas e em muitas cidades amazônicas”, avalia a autora.
Ficha Técnica
Artistas paraenses colaboraram com a produção, cedendo algumas de suas músicas afins às temáticas do projeto. As cantoras Lu Guedes e Larissa Mê e o Grupo Quaderna integraram os três últimos episódios.
A própria jornalista Erika Morhy é responsável pelas entrevistas, pelo roteiro e pela apresentação do podcast. As transcrições das entrevistas são de Helena Morhy Pamplona. O desenho de som e a mixagem são de José Viana. A produção é de Lília Macapuna. E a direção de arte é de Ana Paula Rosário.
Tanto o livro quanto o áudio-documentário são frutos de pesquisa e criação artística viabilizadas com o projeto selecionado pelo Edital de Multilinguagens -- Lei Aldir Blanc Pará.
Sobre a autora
Erika Morhy nasceu em Belém (PA), em 1977. É jornalista e Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Entre suas atuações na área da cultura, foi curadora do projeto Sarau da Memória, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH). Tem experiência, como pesquisadora, no Museu Paraense Emílio Goeldi e no projeto Casa da Escritora Paraense, da UFPA.
SERVIÇO
Livro: “Mulheres do mar: relatos biográficos de Salinas a Deir Ammar”
Onde comprar: Livraria Ifá Belém PA - via WhatsApp - (91) 99162-2115
Podcast: Mulheres do Mar
Onde ouvir: Spotify