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Sociedade Incivilizada

8 de Dezembro de 2021

Estamos na semana em que se comemora o dia da justiça (08/12). Entretanto, infelizmente, sinto dizer que a data somente tem se prestado para que venhamos cada vez mais a clamar por ela, e não propriamente para atestá-la e reconhecê-la.

Há exatos 365 dias, escrevi em alguns canais de comunicação um texto mais ou menos nessa mesma linha, isto é, denunciando as excrecências jurídicas de nosso país e comentando sobre a difícil tarefa de enxugar gelo ao longo de quase 20 (vinte) anos de profissão.

Pois é! E o pior de tudo é que, passado um ano desde o referido artigo, muito pouco ou quase nada mudou. Na realidade, creio até que ficou pior.

De lá para cá, quantas condenações de criminosos, em especial de colarinho branco, foram anuladas por questiúnculas técnico-jurídicas ridículas, e cujos entendimentos foram sendo modificados ao longo do tempo somente para beneficiar tais pessoas?

E os criminosos violentos? Pensam que foram deixados de lado? Óbvio que não! Se já não bastasse André do Rap ter sido solto em 2020, este ano tivemos o absurdo multiplicado ao menos por dois. Seus colegas “Piauí” e “Gordão” também foram agraciados do mesmo modo, isso só para ficarmos com eles. A lista é imensa e somente quem trabalha na área sabe como é difícil manter alguém efetivamente preso no Brasil. Se nas instâncias ordinárias a coisa é um pouco melhor, é certo que depois vai ficando bem diferente.

Para piorar ainda mais a situação do último ano, tivemos ainda um massacre de crianças em Saudades - SC, cujo desfecho judicial ainda caminha a passos de tartaruga.

O assassino, é bem verdade, está detido desde a data dos fatos (maio de 2021), mas vem sustentando uma inimputabilidade penal para que ganhe as ruas o quanto antes. Ao contrário do que se propala por aí, ninguém no Brasil fica internado em um manicômio judiciário por muito tempo. Pelo contrário! E é exatamente isso que o homicida pretende. E o pior é que a Justiça catarinense aparenta cogitar a viabilidade do argumento defensivo, tanto que já autorizou a realização do exame de insanidade mental do agente, mesmo sendo ele uma pessoa absolutamente organizada e que premeditou por meses a prática delitiva.

Aliás, esses e outros absurdos relacionados à Justiça e a esse caso específico estão todos enumerados e denunciados na nova obra da escritora gaúcha Rô Mierling, a qual desde já recomendo (O Mal e o Massacre Deixaram Saudades, Ed. Illuminare, 2021 – www.romierling.com.br).

Cansada de ver a impunidade enraizada em vários casos da Justiça brasileira, em especial no que tange à morte de crianças, a já premiada autora não só chama a atenção para o aumento de episódios desse tipo no país, mas também, e principalmente, clama por leis mais eficazes e enérgicas para seus respectivos autores.

Se no Brasil existem regras para quase tudo, dificultando e burocratizando a vida das pessoas de bem, é certo que, por outro lado, para muitas outras coisas que necessitamos de verdade elas realmente não existem. Os fatos estão todos aí e não me deixam mentir. Aliás, como já dizia John Adams, “os fatos são essas coisas teimosas que não se submetem aos nossos desejos”.

Outra injustiça denunciada pela escritora em seu inédito livro é a questão de alguns massacres semelhantes ao de Saudades serem descobertos ainda na fase de planejamento, mas não poderem ser castigados suficientemente. No Brasil, geralmente, os crimes só passam a ser punidos quando começam a ser efetivamente executados (CP, art. 14, II e 31). Se uma pessoa é descoberta idealizando ou preparando um assassinato em massa, muito provavelmente não será punida, a não ser que alguns de seus atos preparatórios já constituam algum crime previamente previsto (p.ex.: apologia de crime ou criminoso, induzimento ao suicídio ou à automutilação – recentemente criado -, porte ilegal de arma de fogo, etc.). Entretanto, como dito, isso é exceção. E mesmo quando a exceção entra em cena, as reprimendas dos delitos acima exemplificados são absolutamente desproporcionais aos danos produzidos e aos perigos gerados.

Muitos tentam enquadrar o planejamento de um massacre em massa na Lei Antiterrorismo brasileira, promulgada anos atrás, mais precisamente em 2016. Todavia, muito embora tal diploma legal puna realmente atos preparatórios tidos por terroristas (art. 5° da Lei 13.260/16), é fato que, absurdamente, essa mesma legislação somente considera como atos terroristas aqueles perpetrados por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou religião. Em outras palavras, quando o agente é movido por qualquer outro sentimento (maior parte, portanto), a execução ou a preparação de homicídios coletivos não poderá ser inserida na mencionada lei.

Enfim, ao contrário de muitos da área jurídica, inclusive de alguns colegas de instituição, não vejo motivos para que a data mencionada no início seja efetivamente festejada. Somente haverá dia da justiça no Brasil quando vivermos em uma sociedade realmente civilizada, isto é, onde as autoridades premiem os bons e punam os maus, tal como ensinado pelo Apóstolo Paulo nas Escrituras Sagradas, mais precisamente em Rm 13:1-5. Até lá, difícil não se frustrar com aquilo que está diante de nossos olhos.

Por essas e por outras, a cada dia tenho mais certeza de que Aristóteles realmente estava certo: “Assim como o homem civilizado é o melhor de todos os animais, aquele que não conhece a justiça e as boas leis acaba se tornando o pior de todos eles”.

Rodrigo Merli Antunes

Promotor de Justiça em São Paulo e pós-graduado em Direito

Coautor da obra O tribunal do júri na visão do juiz, do promotor e do advogado

Autor da coletânea de artigos intitulada Se eu cair, vai ser atirando!

Membro do MP Pró-Sociedade

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