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Escravidão moderna frustra sonhos de atletas brasileiros

2 de Setembro de 2019

Temas que afligem a cadeia esportiva no País, como o tráfico de atletas, lesões corporais produzidas por violência nos esportes ou contratos abusivos que “prendem” jogadores a clubes, apontam para a necessidade de união entre as Justiças do Trabalho e Criminal no enfrentamento de questões de Direito Desportivo. Especialistas na área aprofundaram esse debate durante Congresso promovido pela Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AATSP).

Para a advogada Patrícia Vanzolini, doutora em Direito Penal pela PUC-SP e professora da Universidade Mackenzie, uma das situações mais trágicas, a que envolve o tráfico de atletas, ainda não é perfeitamente captada pela lei penal brasileira. “Até 2016, pasmem, sequer havia no Brasil o crime de tráfico de pessoas”, lembra. Segundo ela, apesar de o país ter ratificado o Protocolo de Palermo, da ONU, de 2003, tratando da questão, inicialmente o crime só era tipificado em casos de tráfico para exploração sexual.

A especialista explica que atualmente quatro tipos penais podem estar envolvidos em situação de tráfico de atletas: o tráfico de pessoas, o trabalho escravo, o crime de imigração ilegal e o envio ilegal de criança para o exterior (tráfico envolvendo menores previsto no artigo 239 do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA). 

No entanto, o tráfico de pessoas, caracterizado por “agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar ou alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude, ou abuso” precisa estar associado a pelo menos uma de cinco finalidades: “remover órgãos, submeter a trabalho em condições análogas a de escravo, submeter a qualquer tipo de servidão, adoção ilegal ou exploração sexual”. A pena é de 4 a 8 anos de reclusão.

O caso do ex-jogador de futebol Rafael Ferrazi, por exemplo, teria dificuldade para ser enquadrado como tráfico de atletas. Em 2010, depois de passagem pela categoria de base de um time paulista, e sonhando com a profissionalização, acabou aceitando uma “oportunidade” no Exterior proposta por empresários brasileiros e paga por sua família. Na Espanha chegou a passar fome, e em outro contrato que o levou a Portugal, fez apenas uma peneira na terceira divisão antes de voltar ao Brasil, desiludido. “Foi um único teste em um único time, apesar de tudo que haviam prometido”, desabafou.

“Essa situação de tráfico, como a que o Rafael sofreu, ainda não é perfeitamente captada pela nossa lei penal. Porque não houve efetivamente ali a exploração de trabalho escravo ou qualquer uma das cinco finalidades”, exemplificou Patrícia Vanzolini. Para ela a legislação é muito recente e falha. “Temos instrumentos penais, mas eles não são suficientes para cobrir essa trágica realidade. Acredito que esses dois ramos, da Justiça do Trabalho e Criminal, podem contribuir para que esse tipo de prática seja minimizado”, disse, apontando a necessidade de responsabilização prévia de clubes e confederações e fiscalização rigorosa para coibir a ilegalidade.

Para a advogada, o mais “trágico” da situação é o fato de envolver “o sonho de grande parte dos jovens atletas, muitas vezes de comunidades carentes e alvos fáceis de aproveitadores e estelionatários”. Um sonho que não corresponde à realidade. Segundo o advogado Felipe Meleiro Fernandes, especialista em Direito e Processo do Trabalho pela USP, dados da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) enviados ao Ministério do Trabalho em 2016, mostram que apenas 0,8% dos salários do futebol estão acima de R$ 50 mil. “Profissões como ascensorista, catador de material reciclável e garçom possuem salário maior do que a maioria dos jogadores de futebol, que está abaixo de R$ 1 mil”, esclarece.

Elton Enéas, conselheiro da AATSP, afirma que os inúmeros casos que vitimam atletas podem ser considerados como “escravidão moderna” e revelam um componente cultural. “Tivemos quatro séculos de escravidão no Brasil, país que mais tardiamente provocou a abolição da sua escravatura (1.888). Vivemos hoje os reflexos culturais dessa situação”. Na sua opinião o tráfico de atletas é um crime difícil de ser apurado. Os especialistas apontam não apenas o tráfico para o exterior, mas também o interno, que leva jovens do Norte e Nordeste a buscar chance profissional nos grandes times.

Em outra esfera, a juíza do Trabalho, Patrícia Therezinha de Toledo, lembrou a responsabilidade objetiva dos clubes, citando um caso prático em que o ex-jogador Diogo dos Santos Lima, ajuizou reclamação trabalhista contra o Cruzeiro EC e o Laboratório Merck, após sofrer um infarto durante treino, em 2006, interrompendo sua carreira. O atleta alegava que um medicamento prescrito pelo médico do clube teria sido determinante para desencadear o problema. O caso chegou a ter decisão do TRT condenando o clube por danos morais e pagamento de pensão ao jogador até os 35 anos, idade em que poderia estar atuando. Mas a decisão foi revista pelo TST, que manteve apenas pena por dano moral de R$ 120 mil.

“Eu levanto aqui a Lei Pelé, que trata do futebol, que no artigo 34 diz que são deveres da entidade de prática desportiva submeter os atletas profissionais aos exames médicos e clínicos necessários à prática. Se um atleta ficou doente, nem precisa provar nexo de causalidade, porque é dever. A ferramenta do jogador é o corpo e a saúde”, defende. 

Lesão corporal e HC

O delegado de Polícia e professor, Manoel Giordani, autor de livro sobre Direito Desportivo, lembrou as lesões corporais produzidas no desporto e seus reflexos criminais. No caso específico do futebol, modalidade classificada por especialistas como categoria na qual a violência pode ou não ocorrer durante sua prática, a dúvida é como analisar situações que em tese configurariam crime, como uma lesão corporal praticada durante a partida. Para o delegado, se uma determinada conduta do atleta (dentro das regras da prática) foi amparada e punida pelo direito administrativo disciplinar, não há que se falar em crime. “O direito penal deve ser utilizado como a última razão”, destacou.  

Mas na opinião de Manoel Giordani, se eventualmente houver uma agressão proposital de um atleta, como um soco em um companheiro por conta de uma discussão em campo, essa conduta pode e deve ser sancionada pelo direito penal, no caso uma lesão corporal dolosa. Mas dependeria de representação do ofendido. 

Para o conselheiro da AATSP, Elton Enéas, nenhum direito desportivo nem instância administrativa que cuida dos julgamentos dessas questões parece suficiente em algumas situações que acontecem em campo. “Atos de violência concreta, às vezes de violência de torcida, situações de racismo, que pela Justiça Desportiva muitas vezes têm como penalidade simplesmente a perda de mando do time, evidentemente se mostra insuficiente para a vítima de agressão, que vai se sentir atingida em outras esferas”, afirma. 

Fazendo um paralelo não só no Direito Penal como no Direito do Trabalho, Enéas destaca a obrigação do empregador em zelar pela integridade física e moral do seu trabalhador. Ou seja, se envolver jogadores, “tem repercussões na esfera trabalhista”. O conselheiro também lembrou o “renascimento” do habeas corpus na Justiça do Trabalho para casos de jogadores de futebol que ficam “presos” a seus clubes, atrelados a contratos abusivos. “É um instrumento bastante interessante, contundente e eficaz para essas questões. O HC trouxe um remédio adequado para isso”, afirmou.

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