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A liberdade não é um pedaço de pão

29 de Novembro de 2023

Por Victor Missiato

Don quixote, Sancho Panza | Foto de ddzphoto por Pixabay

Em Dom Quixote de La Mancha, o espanhol Miguel de Cervantes brinda ao mundo uma das principais obras que inauguram a ideia ficcional de modernidade. Trata-se de uma leitura embrionária dos impactos da modernidade no seio de um mundo ainda demasiado medieval, onde o tempo e o espaço ainda não estão preparados para os impactos sociais e econômicos ligados à força de um moinho de vento. Ao se deparar com a inevitabilidade da derrota, Dom Quixote insiste em não desistir, em nome de uma honradez que perdeu o seu valor, embora jamais perdesse a sua consciência.

Ao trazermos tal reflexão para os tempos atuais, falamos em resiliência para nos apropriarmos das lições de Cervantes no que diz respeito à latência do peronismo, enquanto cultura política hegemônica na Argentina das últimas décadas.

No início dos anos 1940, um grupo de militares argentinos deu um golpe no país, tomados por diversas ideias fascistas, que já haviam influenciado outro golpe na América Latina, quando Getúlio Vargas decretou o Estado Novo, em 1937. O Governo dos Oficiais Unidos (GOU) trazia consigo uma visão reacionária da política, contrária a diferentes tipos de comunidades políticas, como o comunismo e o liberalismo. Dentre os líderes desse movimento estava Juan Domingo Perón, que assumiu a presidência em 1946 e consolidou um legado político, social e econômico que ainda insiste em pautar a organização da sociedade argentina.

As bandeiras hasteadas e implementadas pelo peronismo pautaram-se no nacionalismo, no anti-liberalismo das elites conservadoras, no anti-comunismo da cultura operária e, principalmente, na criação do chamado justicialismo, que procurou estabelecer uma série de reformas social em prol do trabalho na Argentina, o que lhe garantiu um histórico apoio popular. Assim como ocorreu com o varguismo no Brasil, o peronismo argentino transcendeu a figura de seu líder e pautou diversas decisões políticas de governos posteriores.

Nos anos 1950, 1960 e início de 1970, a Argentina sofreu com uma série de crises políticas e golpes militares, quando, em 1973, Perón retorna de seu exílio e reestabelece sua política no ano em que explode a crise do petróleo no mundo, o que acabou por implodir a força da ideia de Estado de Bem-Estar social no mundo contemporâneo. A título de comparação, em 1973, o general Pinochet lideraria um golpe que futuramente se tornaria um projeto neoliberal no Chile.

Embora tenha ficado apenas três anos no poder, sofrendo um duro golpe militar em 1976, o peronismo não foi destruído pelos seus sucessores, como ocorreu com o projeto social chileno, vigente desde a década de 1930. Na contramão das reformas liberais, a Argentina não conseguiu se modernizar a partir dos anos 1990, quando entrou em uma espiral de crises, culminando no famoso corralito.

Na rota do desenvolvimento chinês, a partir de 2003, a Argentina voltaria a eleger um candidato peronista, diante de um grande aporte de capital estrangeiro devido às exportações de commodities. Tal desenvolvimento fez com que a ideia de justiça social novamente ganhasse força entre as classes populares argentinas. Aumentos de subsídios, falso controle da inflação e políticas sociais marcaram os governos kirchneristas de Néstor, Cristina e Alberto Fernández, com um interregno liberal fracassado, liderado por Maurício Macri.

Tais medidas peronistas, implantadas em uma nova ordem econômica mundial fez com que a Argentina ficasse estacionada no tempo em termos de produtividade. A ideia de “ruim com e pior sem” chegou a um limite que deflagrou na vitória de um político elogioso das políticas de Margareth Thatcher, então pior inimiga contemporânea do país, quando liderou Inglaterra na Guerra das Malvinas. Embora o peronismo esteja longe de ter um fim, é certo que, assim como Dom Quixote, sua existência ficará restrita a uma política de resistência contra a hipermodernidade e seus novos moinhos de ventos. Para além do assistencialismo empobrecedor peronista, como diria Cervantes, "a liberdade, Sancho, não é um pedaço de pão".

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